fonte: MedScape
Há dois anos, a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) incluiu o tópico “Espiritualidade e Fatores Psicossociais em Medicina Cardiovascular” na atualização de suas diretrizes. Passados os anos, fica a dúvida: “Já temos evidências suficientes para inserir espiritualidade no plano terapêutico?”
Essa e outras perguntas foram debatidas no colóquio sobre espiritualidade, realizado em 11 de maio no 39º Congresso da Sociedade de Cardiologia do Estado do Rio de Janeiro (Socerj).
Os debatedores esclareceram que não se trata de abordar a religiosidade ou interferir na religião dos pacientes. “É preciso entender que o médico não vai orar com o paciente, não vai ‘prescrever religião’”, afirmou o Dr. Sergio Lívio Menezes Couceiro, cardiologista, intensivista e presidente do Departamento de Espiritualidade e Medicina Cardiovascular (DEMCA) da Socerj. Segundo ele, o objetivo é despertar o entendimento de que o indivíduo precisa ressignificar a sua existência e o seu comportamento.
“De forma muito robusta, os estudos já comprovam o benefício da espiritualidade na [redução da] mortalidade e de eventos cardiovasculares. Um deles é [a declaração científica] da American Heart Association (AHA), publicada em 2021 [no periódico] Circulation,[1] que aborda a chamada conexão entre mente, coração e corpo. O trabalho fala muito claramente sobre a importância da anamnese e indica que inclua a avaliação da chamada ‘saúde psicológica negativa’, que inclui fatores como depressão, ansiedade e raiva, bem como da chamada ‘saúde psicológica positiva’, incluindo fatores como resiliência, senso de propósito e gratidão”, afirmou o Dr. Júlio César Tolentino, professor adjunto de clínica médica e espiritualidade da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
Mas como isso funciona na prática? Como deve ser essa abordagem com os pacientes? Ricardo Bedirian, professor adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), explicou que existem intervenções sendo estudadas e que a proposta inclui um cuidado integral do paciente, a chamada medicina comportamental, cuja nomenclatura está sendo atualizada para medicina de estilo de vida.
“Temos que aplicar a ‘anamnese espiritual’, identificar se os pacientes têm demandas [especificas,] para que consigam fazer as modificações e [então] aderir ao tratamento. Sabemos que alguns aspectos relacionados ao sofrimento espiritual impactam negativamente, levando a maior adoecimento cardiovascular. Temos que pensar em um contexto de prevenção primária e prevenção secundária”, disse o professor, citando meditação e outras práticas que estimulam a psicologia positiva, como a “intervenção da gratidão” e a “intervenção do perdão”, que estão sendo estudadas e testadas por cardiologistas.
Como entender “a anamnese espiritual”? Quais benefícios sustentam esse tipo de estratégia? Tais questões foram levantadas pelo moderador da sessão, Dr. Roberto Esporcatte, médico e coordenador do DEMCA.
Neste sentido, o Dr. Sergio falou sobre a importância do conceito de enfermidade moral. Segundo ele, este é um termo que ainda está em construção e apresenta poucas (mas algumas) diferenças entre a literatura nacional e a estrangeira. O ponto central reside no entendimento de que é importante voltar aos mecanismos causadores da doença: “Quando começou? Qual é a doença?”. Para o Dr. Sergio, as atitudes e o comportamento do paciente podem explicar se há um processo de enfermidade moral.
“Não se trata de discutir moral e ética, mas a forma como esse paciente está tendo uma conexão com o mundo que o cerca e com o seu mundo interior. A enfermidade moral não é observada por meio de exames de imagem ou laboratoriais, mas pode ser avaliada através de escalas e questionários. Já fazíamos isso antes, mas não tínhamos dado um nome à prática. Sabemos hoje que o perdão está associado a melhor evolução da doença arterial coronariana e a gratidão à melhora da insuficiência cardíaca. E que a raiva influencia na insuficiência ventricular esquerda. Temos os exemplos da síndrome de Takotsubo, da doença de minoca (myocardial infarction and nonobstrutive coronary arteries) e dos transtornos de ansiedade e depressão. A enfermidade está na forma como estamos percebendo o mundo e absorvendo o estresse que o mundo nos traz”, disse Dr. Sergio.
O Dr. Julio Tolentino lembrou que a Escala FACIT-Sp-12 de Bem-estar Espiritual, por exemplo, é muito usada nas suas três dimensões: paz, fé e sentido, aspectos importantes tanto para a estratégia terapêutica como para ensaios clínicos (observacionais e de intervenção), contribuindo assim para o procedimento científico, conforme vem sendo verificado a partir de artigos e colaborações em periódicos internacionais. “É uma retomada da ciência em construção, temos que ficar atentos. O desafio é entender o conceito de enfermidade e ter estratégias mais bem definidas”, disse.
Também há dificuldades na esfera clínica. Afinal, como avançar na obtenção dessas informações e no entendimento de enfermidade moral no contexto clínico (p. ex., ambulatórios e hospitais) diante da complexidade apresentada por tais questões, que são de foro privado? Para o cardiologista do Hospital da Força Aérea do Galeão e professor da Universidade de Vassouras, Dr. Vitor Moreira Alvarenga, o segredo está na escuta.
“Devemos sempre buscar a escuta compassiva ao paciente, deixá-lo falar. Ele vai manifestar emoções e conflitos. É verdade que temos questionários, que podem ajudar a avaliar, porém, mais do que tudo, necessitamos ouvir sem julgamentos e entender o sofrimento espiritual. Entender a dor física e o acometimento orgânico [é importante], mas não apenas, e sim também levar nossa compreensão ao estresse social e de suas relações, às dificuldades financeiras e ao estresse psicológico, como ansiedade e depressão. Temos que estar atentos quando os pacientes demonstram emoções negativas que traduzem isso”, ressaltou o Dr. Vitor.
O Dr. Ricardo concordou e completou, sinalizando que os questionários são mais apropriados para efeito de pesquisa, que o médico precisa saber o que está buscando. “Eu gosto do modelo de Fisher, dos quatro domínios da espiritualidade: pessoal, interpessoal, ambiental e o transcendental. Tendo em mente esses aspectos, vamos apurar como isso impacta no processo de adoecimento e no tratamento do paciente. É uma abordagem de múltiplos aspectos”, disse.
O Dr. Sergio concordou que o padrão-ouro continua sendo o estudo randomizado, mas alertou que as escalas e os questionários contribuem para a mensuração da enfermidade espiritual que, a partir de então, pode ser classificada como leve, moderada ou severa. Segundo ele, “essa é a proposta do Departamento de Espiritualidade e Medicina Cardiovascular da Socerj, braço integrante da iniciativa da Sociedade Brasileira de Cardiologia, do ponto de vista nacional, e que caminha na vanguarda a nível internacional”.